A crise dos festivais de rap e a inflação nos cachês: Reflexões a partir do vídeo de Keni Martins

Fundador do Rap in Cena comenta cenário atual dos shows e festivais de rap no Brasil; análise aprofunda o debate sobre precificação e mudanças no consumo de entretenimento

Keni Martins, fundador do Rap in Cena — festival sediado em Porto Alegre (RS) e considerado o maior evento de hip-hop do Brasil — publicou recentemente um vídeo em suas redes sociais trazendo um olhar experiente sobre a crise que afeta o mercado de shows e festivais de rap no país. O vídeo analisa uma postagem da página Rap Mais sobre o sumiço de grandes festivais no circuito nacional, reacendendo uma discussão que já havia sido levantada pela empresária Nicole Balestro, atuante no ramo e crítica da atual estrutura de precificação de artistas.

Em sua fala, Keni lembra que essa questão já é percebida por quem está na cena há mais de uma década. Ele aponta para a inflação nos cachês como um dos principais fatores do atual colapso: artistas com valores entre R$ 100 mil e R$ 300 mil, viajando com equipes de 15 a 20 pessoas, comprometendo os custos totais de produção. “Tem muito artista com milhões de seguidores que não consegue vender nem 300 ingressos num show solo”, afirma.

O problema, segundo ele, é estrutural. A popularidade nas redes sociais passou a ditar valores, ignorando a realidade do mercado de shows presenciais. Keni destaca que os produtores acabaram pagando a conta da fama inflacionada, e que hoje o efeito cascata está sendo sentido em toda a cadeia — da ausência de festivais até o esvaziamento das agendas de artistas. Ele menciona também a pandemia como um divisor de águas: a monetização digital cresceu, mas desconectou ainda mais artistas do contato direto com o público pagante.

Nicole Balestro, por sua vez, comentou que “artistas que cobram cachê com base em ouvintes mensais não têm noção nenhuma de como a máquina funciona”, sintetizando uma crítica que ecoa entre empresários e produtores que lidam diretamente com a operação dos eventos.


[Opinião] A real conta por trás do cachê

Como jornalista que acompanha essa cena de perto, me parece urgente refletir sobre quanto o artista realmente embolsa após o pagamento do cachê. O que vai para a estrutura do show, segurança, DJ, produtor, técnico? Se a distribuição for justa, tudo bem. Mas o que acontece quando o cachê está inflacionado e a demanda não acompanha?

O mercado já está reagindo. Line-ups mais enxutos, queda nos shows solos, redução de até 30% nos cachês. A conta não fecha mais como antes, e o próprio público está mudando seu comportamento: menos balada, mais evento diurno — tendência que festivais como o Rap in Cena já identificaram e incorporaram ao seu formato, encerrando atividades antes da meia-noite.

A lógica do “menos é mais” pode até fazer sentido para o bolso de quem está no topo, mas sufoca a base. Hoje, para alguns artistas, três shows a R$ 500 mil compensam mais do que 15 shows a R$ 100 mil. Mas será que essa lógica é sustentável? Será que ela alimenta o ecossistema ou o esgota?

Keni levanta um ponto crucial ao afirmar que muitos artistas não sustentam a demanda que seus próprios cachês sugerem. E é exatamente essa realidade que está forçando o mercado a se reorganizar — ou implodir.


Conclusão: ou o mercado se adapta, ou será adaptado à força

A fala de Keni Martins gerou grande repercussão entre empresários, produtores e artistas do rap nacional. Mais do que uma crítica, ela propõe uma autocrítica coletiva: da parte dos artistas, dos contratantes, das marcas e de quem constrói essa cultura todos os dias.

E é justamente nesse ponto que acredito que precisamos refletir com urgência: se os cachês continuam subindo e os ingressos seguem inacessíveis, os festivais vão afastar quem sempre sustentou essa cena. O rap nasceu nas ruas e precisa continuar com os pés no chão — não nos camarotes, nem nas métricas de streaming. É hora de “voltar pra base” e entender que a elitização da cena não é o caminho para a sustentabilidade do rap no Brasil.